3.2.15

Singing without an audience

Aos poucos creio que os nossos sonhos de criança não morrem todos. Por tal, ganhamos a capacidade inerente aos super-heróis: poder ser invisível. Infelizmente, calha também ser o mais perto que temos da solidão.

Não é uma habilidade que deixamos surgir, mas antes imposta, por todos os que não nos olham nos olhos. Os que evitam parar. Os que nunca deixam que lhes toquemos com as pontas dos dedos, para saber se são reais ou deixámos mesmo de estar lá.

Um dia acordamos, abrimos o olhar ao mundo e o mundo fechou-nos os olhos. Esqueceu-se.
Há dias em que a própria existência assemelha-se a sonho. Que viajamos e deambulamos fora de nós. Que aquela vida não parece a nossa.
 
Há três dias vi isto acontecer.
Mergulhei com atenção nos olhos de um mendigo, que uns minutos antes tinha sido espancado por outros dois, apenas por pedir na mesma estação que eles.
A melhor expressão que posso usar é: senti-me uma merda. Mas a merda que me senti não era nada.
Chorei e senti-me estúpida por isso. Porque eu não sei nada.
Ele não chorou. Porque iria eu chorar?
Não fui eu que não soube onde dormiria essa noite. Nem eu que tomei apenas uma refeição no dia. Não fui eu que bebi para esquecer ou apenas colocar o espírito em dormência. Não fui eu que dormi numa cadeira, acordado pela cadência de metros a passar. Não fui eu que deambulei sozinha, desprotegida. Não fui eu que não recebi abraços.
 
Tantas e tantas vezes os nossos piores dias são muito pouco.
Não somos todos assim tão diferentes. Há um dia em que poderemos acordar e ver que desaparecemos: invisíveis, passivos. A nossa voz não chegará aos ouvidos de ninguém e, mesmo quando cantarmos para todo o metro ouvir, ninguém baterá palmas. Ninguém quererá saber.

5 comentários:

  1. É verdade. Muitas vez queixamo-nos de tanta coisa, que se formos a ver, o nosso pior pode ser o melhor que muita gente tem. Temos que aprender a dar mais valor às nossas coisas.

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  2. À força, por vezes, a vida (dos outros) ensina-nos a relativizar a vida (a nossa). E aprendemos com isso na mesma medida em que sofremos pelo sofrimento dos outros, e sofremos pelo sofrimento que vamos tendo e que, se calhar, não deveríamos ter.

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    1. É um placebo, no fundo. Pensamos que se relativizarmos por termos exemplos "piores", podemos curar quaisquer males, mas é temporário. O ser humano vive para a constante insatisfação.

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  3. Quando sai-mos de nós apercebemo-nos que a vida não é um conto de fadas, que existem vidas sem vida. E que se resignaram ou simplesmente desistiram de lutar, encarar essa realidade faz-nos ver a fragilidade humana.
    Fernando Pessoa tem um verso que gosto muito e que me atrevo a Citar: "Canta ceifeira canta! Que eu sofro por ti!"

    Adorei o Post

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